Casa de Mensagens: quais narrativas fortalecem a Amazônia?

maio 24, 2023

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Ainda existem muitas histórias distorcidas sobre a Amazônia que, a partir de uma perspectiva colonizadora, construíram sistematicamente um imaginário de que esse território é apenas um lugar abandonado pronto para ser explorado. Toda vez que essas histórias são difundidas, elas acabam não apenas moldando a opinião pública, mas também tendo consequências concretas, como o desmatamento, garimpo e violências contra comunidades.

Se queremos proteger esse território, precisamos fomentar outras narrativas que refutem e combatam as que hoje geram devastação. Foi assim que surgiu a ideia da Casa de Mensagens: uma plataforma online navegável com mensagens que podem ser utilizadas para inspirar, engajar e educar em defesa da Amazônia e seus povos. 

O discurso vira prática

Referência em educação ambiental, o professor José Quintas diz que “a chave do entendimento da problemática ambiental está no mundo da cultura, ou seja, da esfera da totalidade da vida em sociedade” (2006). Isso significa que problemas concretos e contemporâneos, como o desmatamento na Amazônia, têm suas raízes em um modo de pensar colonial, onde se enxergava a região como um vazio demográfico, uma terra a ser descoberta, um espaço de recursos a serem explorados e, por fim, um território exotificado. Séculos se passaram e hoje podemos perceber que prática e discurso se retroalimentam, em um ciclo que precisa ser intencionalmente rompido. 

Em 2022, o Laboratório de Clima da Purpose fez uma curadoria de pesquisa para identificar as principais narrativas que pautam as percepções que a população tem sobre Amazônia hoje e que, portanto, fomentam o que fazem ou deixam de fazer em relação à ela. Como resultado, foram identificados quatro blocos narrativos principais: a Amazônia Inventada, a Amazônia no Chão, a Amazônia Consumida e a Amazônia de Pé. 

  • A Amazônia Inventada é uma construção histórica dos colonizadores, que apresentam esse território como sua “descoberta”, contribuindo para duas formas de relação com ele: a primeira é de necessidade de desenvolvê-lo, e a segunda é de estereotipá-lo. Enquanto o desenvolvimento traz em si uma noção de “atraso” e justifica projetos como aberturas de estradas e hidrelétricas sem considerar quem vive ali (vide Transamazônica e Belo Monte), o estereótipo de uma floresta encantada e misteriosa, distante dos grandes centros urbanos, contribui para que a população entenda a Amazônia de forma mitológica e romântica, sem compreender sua pluralidade e desafios. 
  • A Amazônia no Chão é um manifesto daqueles que acreditam no lucro acima de tudo, promovendo ideias de superioridade e dominação responsáveis por eleger quem é mais ‘sacrificável’ para que o desenvolvimento aconteça. Propagam narrativas que defendem que a colonização e o desenvolvimento foram uma espécie de “salvação” para um Brasil “primitivo” e que os entraves desse “progresso” seriam os povos da floresta: “pobres” que estão sentados em cima de uma riqueza não explorada. Liderada pelo próprio Estado e pelas elites econômicas, essa exploração predatória do território tem como consequência um ciclo de violências que englobam o desmatamento, o tráfico, o extrativismo etc.
  • A Amazônia de Pé se propõe a resgatar modos de vida que declinam perspectivas ocidentais utilitaristas ou até mesmo romantizadas da natureza. É baseada no respeito – pela terra, pela floresta e por todos os seres vivos – e sua concretização passa pela autonomia dos povos. Por várias gerações, dos anciãos aos jovens ativistas, a estratégia tem sido um ciclo de lutas liderado por aqueles que resistem para transformar o presente e o futuro da Amazônia. A aliança dos povos, a demarcação de terras, a autonomia produtiva, entre outras, são as lutas-base que contribuem para sua esse modelo de coexistência que resiste desde 1500.
  • A Amazônia Consumida é baseada em uma falsa conciliação entre exploradores e explorados. Ela surge da dicotomia entre a Amazônia no Chão e a Amazônia de Pé, se colocando como uma terceira alternativa. O objetivo é encontrar formas de seguir explorando os territórios e seus povos, porém, com uma pseudo-responsabilidade. Fundamentada no capitalismo verde e em tecnocracia, ela conta com apoio de empresas privadas que buscam agir em prol da sustentabilidade, novas lideranças do capitalismo e do agronegócio, além de parte da comunidade científica e da sociedade civil.

Outras formas dizer

A partir da pesquisa, realizamos sessões de cocriação com ativistas e organizações da Amazônia para discutir sobre esses resultados e criar novas mensagens que pudessem fortalecer as narrativas que mantém a Amazônia de Pé, combatendo as que são prejudiciais. Nesse processo, ficou explícito que não precisamos inventar narrativas do zero: dentro dos territórios existem outras histórias sobre essa região que, através da memória, do conhecimento acumulado e da luta feita até então, apontam caminhos concretos de proteção da floresta e suas populações. Sistematizamos eles em três blocos: 

Resgatar a memória dos povos: Já dizia o ditado: “quem não tem memória, não tem história”. Desde a época da invasão europeia, a história do Brasil foi forjada em narrativas que sequestraram, silenciaram e apagaram as subjetividades dos povos. Por isso, resgatar a memória dos povos e fortalecer suas múltiplas identidades é, enfim, recontar a verdadeira história do Brasil. Difundir e solidificar essas narrativas é um caminho primordial para que um outro Brasil seja possível.

Construir políticas de coexistência: A destruição da Amazônia, tanto do bioma quanto dos seus povos, sempre foi um projeto político. Pautado pela noção de desenvolvimento, o sistema sempre abriu brechas para as elites econômicas do país. Por isso, reivindicar um projeto político de coexistência com as Amazônias é lutar para que projetos de lei e políticas públicas sejam respeitados e construídos a favor daqueles que habitam e protegem o território, seja ele floresta, rio, cidade ou campo. Para que, enfim, o Estado seja aliado, e não inimigo das populações amazônidas. 

Reintegrar tecnologias ancestrais: As promessas do desenvolvimento lideradas pelas tecnologias capitalistas, como a Revolução Verde, não entregaram os benefícios que prometeram: pelo contrário, só causaram destruição ambiental, desigualdade social e apagamento de culturas. Não à toa,  o capitalismo verde tenta, a qualquer custo, protagonizar o “futuro sustentável”. Para além de buscar novas alternativas, é necessário reintegrar a inovação que veio antes ao sistema que existe hoje, valorizando a tecnologia social e a sabedoria dos povos. É isso que tornará nosso amanhã, de fato, possível.

Esses caminhos narrativos se tornaram pilares para, junto da Cojovem, Comitê Chico Mendes, Instituto Mapinguari e Observatório do Marajó, construirmos um material que, sem a pretensão de abranger toda a complexidade do assunto, pudesse contribuir para a visibilidade da perspectiva amazônida sobre seu próprio território, servindo como guia para aqueles que queiram pautar a Amazônia por uma perspectiva de proteção, sem cair em narrativas desatualizadas sobre ela. Chamamos esse material de Casa de Mensagens, pois quando falamos de Amazônia, falamos de um sentimento que representa o lar, morada. Não apenas para quem vive nela, mas para toda a humanidade, que depende dela.

Sinta-se em Casa 

A Casa de Mensagens se estruturou em três cômodos, cada qual baseado em um caminho narrativo: na Varanda quem chega se depara com mensagens sobre resgatar a memória dos povos; já o Interior guarda mensagens sobre construir políticas de coexistência; e o Quintal nos mostra mensagens relacionadas com reintegrar tecnologias ancestrais. 

Para que esse material pudesse cumprir seu papel de amplificar narrativas que fortalecessem a Amazônia e seus povos, elencamos três grupos prioritários para acessá-lo:

  • Aplicadores: alta capacidade de uso do material Ex. Organizações amazônidas, que vão se embasar nas narrativas para apresentar uma proposta aos financiadores. 
  • Aprendizes: alta necessidade de uso, quem precisa aprender com esse material. Ex. Órgãos federais, que vão utilizar dos aprendizados do material para melhor se comunicar no território. 
  • Multiplicadores: alta capacidade de distribuição, que pode apoiar na divulgação desse material. Ex. Influenciadores, que podem produzir material de comunicação sobre a Amazônia em formato de perguntas e respostas.

Baseado nesses públicos, desenvolvemos uma plataforma online (casademensagens.com.br) que permite a navegação dentro de uma casa de estilo ribeirinho, onde o usuário consegue acessar os diferentes cômodos e consultar mensagens que fortalecem a Amazônia e seus povos. Nela também é possível conferir uma galeria com ilustrações e frases de sete artistas amazônidas de diferentes estados, que apresentam o que para eles uma “casa da Amazônia” significa, já que esse é um território múltiplo e suas identidades são construídas em cima desta pluralidade. 

Por fim, desdobramos a Casa de Mensagens em dois kits físicos: um voltado para organizações da sociedade civil local, contendo itens como cartilhas, adesivos e cartazes; e outro com displays cheios de cartões postais destinado a bibliotecas, museus e espaços culturais de diferentes estados da Amazônia Legal. Dessa maneira, esperamos que quem entre em contato com esse conteúdo, se sinta em casa e, sempre que precisar, volte para percorrer os cômodos que serão alicerce para fazer ecoar as vozes amazônidas.


Nara Perobelli de Moraes Assessora de Campanhas e Mobilização 
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