Fortalecer organizações de base da Amazônia: um caminho para o bem viver
abril 5, 2023
Para começar a escrever esse texto, entrei no canal de Youtube de três dos principais veículos de comunicação brasileiros (UOL, Folha de São Paulo e CNN) e digitei “Amazônia” para conferir algumas das matérias mais recentes falando sobre a região. Os vídeos falavam do Fundo Amazônia, do genocídio contra os Yanomami e do aumento do desmatamento e, sem nenhuma surpresa, contavam em sua maioria com homens brancos de outras regiões do país tratando dos temas.
Isso não é de hoje, nem é só do jornalismo: as discussões sobre Amazônia, que são tão centrais para o debate de clima e para toda a humanidade, falham muitas vezes em incluir quem vive de fato nos territórios amazônicos. Onde estavam os jovens das periferias do Pará, as populações negras do Amapá, os ribeirinhos do Amazonas ou os extrativistas do Acre enquanto essas matérias eram gravadas? Aqueles que melhor conhecem os territórios e são mais afetados pelas consequências da crise climática e das atividades predatórias que se impõe sobre a região têm suas histórias e visões constantemente marginalizadas.
Para começar esta publicação, precisamos ouvir quem está na ponta da defesa da Amazônia. Por isso, fizemos algumas perguntas a organizações parceiras da Purpose que refletem um pouco do que aprendemos com elas nos últimos anos.
Como o conhecimento de comunidades tradicionais pode ser um caminho possível para proteção da Amazônia?
“O conhecimento de comunidades tradicionais é o único caminho possível para a proteção da Amazônia – seja porque ela foi construída artesanal e manualmente pelos ancestrais dessas populações, seja porque a preservação da vida na Amazônia é uma herança cultural que garantiu a existência da floresta até hoje. Foi quando uma mulher ribeirinha, extrativista, seringueira foi Ministra do Meio Ambiente que o país adotou as políticas públicas mais eficientes de combate ao desmatamento de sua história. Não à toa: vêm do âmago da Amazônia as estratégias reais de proteção do território – das populações que vivem suas vidas em integridade com os ciclos naturais, que plantam, colhem, regam e têm nesta terra sua história passada e sua perspectiva de futuro – é desta visão, conhecimento e inteligência que é possível elaborar as medidas e ações capazes de lidar com a grandeza e a complexidade, de um lado, das redes de vida que se nutrem e florescem e, do outro, das teias criminosas que envolvem de políticos e empresários a policiais, especialistas, laranjas e pistoleiros. A destruição da Amazônia, afinal, não acontece em plano simbólico, mas no território em que a vida resiste nessas populações, suas identidades, saberes e lutas. Através do projeto Filhas da Mãe do Fogo, por exemplo, o Observatório do Marajó trabalha com grupos de mulheres de comunidades tradicionais ribeirinhas e quilombolas no fortalecimento de práticas tradicionais e de manejo integrado do fogo e já formou três brigadas voluntárias com representantes de municípios que viram o número de queimadas dobrar na gestão Bolsonaro” – Observatório do Marajó
Por que é importante ouvirmos as vozes das juventudes periféricas do Pará na luta contra a crise climática?
“A Amazônia não é obra do acaso. Ela é assim por causa dos amazônidas, dos povos tradicionais e sua influência no modo de vida das pessoas, mesmo nos centros urbanos. Se formos parar para observar, veremos que estamos sendo invadidos e saqueados o tempo inteiro, em território e em intelecto. Levam nossas sementes e desconsideram nossas lutas. Estamos solucionando micro e macro problemas todos os dias, resultados de saqueamentos e de violências. Não somos nós que estamos devastando, nem nós os grandes causadores da crise climática, mas nossa forma de ver e viver pode ser um caminho já testado para o encontro de soluções duradouras. Cansamos de ver soluções externas ao território não funcionando e isso se tornar um desperdício de recursos e de matéria-prima, ou seja, problemas causados por falta de diálogo. Quem poderá falar melhor de algo do que nós mesmos sobre a nossa casa?” – Gueto Hub
O que a experiência e vivência das populações negras do Amapá nos ensinam sobre o combate à crise climática?
“O Amapá ainda é um estado “esquecido” dentro do panorama nacional, em vários aspectos, por esse motivo a população precisou criar alternativas até mesmo para lutar por seus direitos, sobretudo pessoas negras que hoje formam 65% da composição demográfica amapaense. A negritude amapaense combate todos os dias a crise climática, seja quando estão lutando por seu território, seja quando estão gritando para ter água e energia elétrica de qualidade, seja utilizando da agricultura familiar e do extrativismo como formas de manter a segurança alimentar e a floresta em pé. Mas principalmente quando estão mantendo com muito suor a juventude com livre acesso à educação, porque todo amapaense acredita que a melhor forma de combater a mudança do clima é formando as próximas gerações, pois estas serão protetoras do território e também influenciaram a continuidade dessa luta na nossa sociedade.” – Utopia Negra Amapaense
Por que as mulheres amazônidas precisam liderar e decidir quando o assunto é proteção dos seus territórios?
“A Rede Jandyras surgiu para aumentar a participação feminina nas discussões e ações sobre mudanças climáticas na Amazônia. Sabemos que as mulheres são as principais cuidadoras e responsáveis pela subsistência de suas famílias e comunidades, o que lhes dá um conhecimento profundo sobre os recursos naturais e a importância de conservá-los. Dessa forma, a abordagem das mulheres em relação à proteção ambiental é diferenciada, pois valoriza a conservação da biodiversidade e dos modos de vida tradicionais. No entanto, as mulheres têm sido historicamente marginalizadas e excluídas dos processos de tomada de decisão. Portanto, fortalecer a liderança das mulheres amazônidas na proteção de seus territórios é fundamental para a gestão dos recursos naturais e defesa de seus direitos.” – Rede Jandyras
Nossa experiência na Amazônia
Desde 2021, o Laboratório de Clima da Purpose expandiu seu portfólio de trabalho na Amazônia. Começamos procurando entender melhor como a sociedade civil local funcionava e quais desafios precisavam ser superados para que ela fosse cada vez mais efetiva na sua luta. Apesar da Amazônia estar no centro dos desafios urgentes da emergência climática global, assim como das soluções críticas, organizações locais ocupam, historicamente, um espaço marginalizado no movimento climático. De forma prática, isso se reflete no acesso reduzido a recursos por organizações locais, no desenvolvimento de campanhas sobre Amazônia sem participação de atores dos territórios e na criação e distribuição de narrativas sobre a Amazônia que não têm as populações amazônidas e suas experiências no centro.
Entendemos que, apesar de terem um papel fundamental, organizações locais muitas vezes têm pouco acesso a recursos para desenvolverem e expandirem seu trabalho. Por isso, desde 2021, desenvolvemos projetos que procuraram colocar nossa estrutura à disposição destas organizações, para que sejam elas a propor e liderar campanhas e ações pelo avanço da justiça climática a partir de uma perspectiva local.
Falar da importância de fortalecer organizações de base da Amazônia não tem mistério: são elas que melhor conhecem os territórios e os desafios enfrentados por eles, que escutam de perto suas populações, que carregam consigo a memória e história ali presentes, e que por isso sabem dizer o que precisa ser mudado e como. A memória, a identidade, a ciência, os dados – está tudo lá, mas precisamos ouvir e reconhecer. Apoiá-las e fortalecê-las é um caminho evidente para encontrarmos soluções que promovam o bem viver, para a Amazônia e para o Brasil.
Melhor do que dizer mais é, certamente, mostrar. Por isso, abaixo você conhece algumas das campanhas e projetos desenvolvidas a partir do apoio metodológico e financeiro do Laboratório de Clima e liderados por organizações parceiras e, claro, amigas:
Pesquisas no Pará e Amapá
O último ano foi especial em termos de pesquisas sobre a Amazônia: foram muitas pesquisas de opinião pública feitas conectando a região e as eleições, a fim de informar as melhores estratégias para a sociedade civil. Mas em março, ao nos reunirmos com a Cojovem, o Comitê Chico Mendes, o Instituto Mapinguari e o Observatório do Marajó, eles nos disseram em alto e bom som que não achavam que as pesquisas conseguiam refletir de forma fiel a realidades dos múltiplos territórios e moradores da Amazônia. Será que os resultados de grandes pesquisas nacionais eram verdade para os jovens moradores da RESEX Chico Mendes ou para os agricultores familiares do Amapá?
Foi então que apoiamos estas organizações a realizarem pesquisas próprias. Afinal, quem melhor para investigar estas audiências e territórios do que aqueles que já os conhecem e têm seu trabalho dedicado a eles?
Fala Juventudes
A Cojovem conduziu, dentro do projeto Rebujo, uma pesquisa buscando entender quais as barreiras e oportunidades para a participação cidadã de juventudes nos territórios da Amazônia paraense. Ficou claro, por exemplo, como a participação das juventudes é afetada com a desesperança sobre seu presente e seu futuro, assim como a atuação política destinada às juventudes está no exercício do voto, e não nos espaços de elaboração e decisão de políticas. Além disso, a marginalização e estigmatização da identidade amazônida distancia as juventudes do pertencimento ao território e cultura e, consequentemente, de ações políticas. A partir da pesquisa, a Cojovem promoveu um encontro de juventudes a partir do qual foi criada a Agenda de Políticas Públicas, Projetos e Programas para as Juventudes do Pará.
Agroecologia no Prato
Já o Instituto Mapinguari realizou uma pesquisa buscando saber como melhor mobilizar os amapaenses pela Política Estadual de Agroecologia, Produção Orgânica e da Sociobiodiversidade (PEAPOS). Eles comprovaram na pesquisa que a política ainda é altamente desconhecida, e descobriram, por exemplo, que ganchos importantes para a mobilização em torno dela são o acesso a alimentos saudáveis, nutritivos e da sociobiodiversidade, o acesso pela rádio a informações sobre assistência técnica rural e a criação de grupos informativos em redes sociais e aplicativos de mensageria sobre agroecologia. Foi embasado nessa pesquisa que a organização lançou em março a campanha Agroecologia no Prato, que irá trazer para a esfera pública a discussão sobre a PEAPOS, inserindo nesse diálogo as comunidades tradicionais, quilombolas e indígenas.
Bosque Firme no Bailique
A Associação Gira Mundo construiu em 2022 a campanha Bosque Firme no Bailique, que pressionou os candidatos a governador do Amapá pela reconstrução de uma escola no Arquipélago do Bailique – a Escola Bosque – em seu modelo original, que trabalha a educação sustentável e a valorização dos saberes tradicionais do território.
O Bailique é composto por 8 ilhas e mais de 50 comunidades que correm o risco de desaparecer devido às mudanças climáticas e danos ambientais que atingem diretamente a região. Além de problemas como acesso reduzido à energia elétrica e avanço do mar, a maior escola do arquipélago desmoronou com as constantes erosões e não foi reconstruída pelo governo. A Escola foi um projeto revolucionário criado no Amapá, voltado para as comunidades rurais, com sua educação vinculada aos saberes tradicionais e a uma economia criativa e sustentável na Amazônia. Através da campanha, a Gira Mundo entregou mais de 1000 assinaturas ao governador eleito Clécio Vieira, que assinou o compromisso com a reconstrução da escola. Agora, ela será reconstruída para beneficiar mais de 700 alunos do Bailique.
Di Rocha: Tapajós Sem Potoca
As sete regiões do Baixo Tapajós, no Pará, são grandes alvos de desinformação, principalmente no que diz respeito a grandes empreendimentos e a crescente culpabilização de povos originários frente a crimes contra a natureza. A Associação de Trabalhadores Rurais de Santarém (AMTR) mobilizou-se para combater essa rede de fake news, que chega a territórios sem acesso pleno a ferramentas digitais, energia elétrica e internet. Elas buscaram, acima de tudo, alcançar mulheres da zona rural, ampliar as vozes de jovens lideranças comunitárias e popularizar a pauta da fake news de forma a dar visibilidade aos seus efeitos.
O desafio de distribuir informações confiáveis em comunidades rurais com pouco acesso a internet não é simples, e a equipe foi criativa e assertiva na solução. Elas reuniram 7 mulheres de diferentes comunidades do Baixo Tapajós em dois dias de formações nos quais construíram juntas um jornal impresso, o informativo Di Rocha: Tapajós Sem Potoca. Com cada uma das mulheres preparadas para multiplicar o conteúdo, elas conseguiram distribuir mais de 1600 cópias do jornal em comunidades, aldeias e quilombos. Em um ano em que a desinformação foi altamente usada como arma política, combater as mentiras sobre os territórios retratando as comunidades de forma confiável e acessível fez os moradores sentirem-se representados e engajados para multiplicar o conhecimento nas suas regiões e além.
Defenda o Marajó
O “Abrace o Marajó” foi o programa do Governo Federal criado pela ex-Ministra Damares em 2020 para a Ilha do Marajó. Se no papel seu objetivo era de melhorar o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) dos municípios da região, na realidade tornou-se uma estratégia para entregar as riquezas naturais e sociais da região para os grandes fazendeiros e empresários. Foram mais de 100 linhas de ações pensadas sem a participação popular.
Em 2021, o Observatório do Marajó se mobilizou contra o programa e trabalhou com outras organizações locais para informar sobre seus reais impactos e levar adiante as denúncias junto ao Ministério Público. Foram diversas ações que pautaram na imprensa, nas redes e ruas uma contra-narrativa ao “Abrace o Marajó”, que informava sobre suas consequências reais, como a invasão de territórios, o incentivo a pesca predatória, o aumento no preço de produtos locais como o açaí e as violências contra comunidades tradicionais.
De uma pressão popular no Ministério Público, ao lançamento da música “Abrace o Marajó mas não amam o Marajó” junto ao Bart MC e uma extensa criação de conteúdo, a campanha reuniu 64 outras organizações contra o programa, conquistou duas audiências públicas, pautou veículos como a Rolling Stones e a Carta Capital e alcançou mais de 3000 pessoas. Hoje, o programa se encontra paralisado e em processo de revisão pelo atual governo.
Aquilombaí Malungada
A educação em Jacunday, no Território de Jambuaçu (PA), não é contextualizada à realidade quilombola. Isso significa que não há espaços de criação e fortalecimento do pertencimento quilombola e que os quilombolas, consequentemente, tornam-se pouco identificados com sua história, cultura e identidade, tão importantes para o futuro da comunidade.
Por isso, em 2021 o Projeto Perpetuar criou a campanha “Aquilombaí Malungada”, que mobilizou a juventude educadora das comunidades de Jambuaçu e de outros territórios quilombolas, lideranças políticas e sociedade civil pela efetivação da educação escolar quilombola, dando visibilidade para essa pauta historicamente negligenciada. Através de rodas de diálogo, produção de materiais e pororocas de saberes (encontros de saberes tradicionais e formais, afetos e vivências), elas formaram uma rede de lideranças articulada com a agenda e encaminharam uma parceria com a escola da comunidade.
O que levar de tudo isso
Se continuarmos a pautar a Amazônia de fora da Amazônia, a ouvir sobre a região apenas por quem não vive nela, a ignorar que além da floresta são quase 30 milhões de pessoas e a reproduzir um comportamento colonizador de salvar a Amazônia sem incluir quem está nela nas soluções, não encontraremos caminhos reais para um modelo de desenvolvimento socioeconômico que traga justiça e permita o bem viver da natureza e das populações, na região e em todo mundo.
Conhecer e reconhecer o que as organizações de base vêm construindo há anos, ouvir suas histórias, aprender com suas técnicas e dedicar recurso para fortalecê-las é um caminho concreto e digno para a proteção da Amazônia.
Um guia digital de combate à desinformação.